Sara Não Tem Nome não dá entrevista – ela embarca numa epopéia dialógica, ela faz até a matéria morta das estátuas ganhar vida para uma controvérsia, ela explana como se sobrevive a dias impossíveis, e assim por diante. A Sara Não Dá entrevista e a gente pode provar:
ISTO NÃO É UMA ENTREVISTA. Estas interações filmadas em Belo Horizonte, nas imediações da Lagoa da Pampulha, geraram um OVNI fílmico que transcende, supera, exorbita das fronteiras da entrevista costumeira. Quem duvida, dê o play e tire a prova. Ou você já viu alguma entrevista em que uma pessoa humana, e uma que não acaba de sair do hospício, trata de conversar de maneira ácida com quatro estátuas de homens brasileiros que já estão mortos faz tempo? Assim como aquilo que Magritte desenhou não era um cachimbo, a Sara Não Tem Nome não nos concedeu entrevista, performou sua vida-de-artista e deu-nos um retrato de sua agitada e criativa vida psíquica.
Não, não é (apenas uma) entrevista quando uma artista viva improvisa uma ação performática, sem roteiro prévio e com a câmera filmando, tendo um diálogo bem louco com as encarnações pétreas de Juscelino Kubitschek, Cândido Portinari, Oscar Niemeyer e Burle Marx. Alguém já ouviu falar de alguém que numa entrevista, ao invés de falar o tempo todo com o entrevistador vivo, resolve ir bater um papo com estátuas, e ainda tem a desfaçatez irreverente tão hiperbólica de dizer a eles que “melhorem!”?
– Uma coisa que vocês podem fazer é trocar ideia com a população indígena, por exemplo, com a população negra, né? Porque eu acho que eles vão ter coisas relevantes pra falar sobre esses planos aqui. Mas vocês também… “Ah, não, vou conversar só com meus amigos, só meus amiguinhos!” Aí não dá pra ser feliz, né? Pra gente ser feliz. Não sei vocês, né? Claro que vocês podem estar felizes. “Ah, como que eu sou inteligente, visionário!” Mas e aí… o resto? Tem que pensar em todo mundo, né? Não tá pensando em todo mundo! É isso, eu vim contar para vocês aqui, né? Dar esse recado triste. Aí vocês se viram para fazer melhor. Melhorem!
NÃO, NÃO É BEM UMA ENTREVISTA. Você já viu algum órgão de imprensa doidão o bastante para publicar 2h13min de material duma entrevista? Os detratores já começam a disparar pedras contra nós, “mas é muita bruteza!”, “mas que extensão absurda!”, “cadê a porra do editor?” Sim, isto aqui que trazemos a público não é bem uma entrevista, com o que isto implica de edição, síntese do que foi dito, “cortação” e remontagem, deletes e inserts. Aqui estão, neste vídeo, Sara e seu entrevistador – Eduardo Carli – entregues de forma bruta. É sem maquiagem e sem massagem, e só com um bocadim de montagem.
SARA NÃO DÁ ENTREVISTA é obviamente um título jocoso para esta quase-entrevista, esta entrevista-anômala, que adiciona mais uma camada de ironia ao codinome da multi-artista Sara Braga. Mais que uma entrevista, esta conversa densa é um tratado sobre a anomia na metrópole e o uso da arte como forma de confrontá-la. É uma excelente travessia no campo da crítica política do Brasil da era Bostossauro e sobre como uma pessoa ultra-criativa encarou a tarefa de sobreviver ao genocídio de tanta coisa, inclusive da arte e da inteligência.
É também um compêndio de evidências fartas da sagacidade ímpar que marca esta artista que pudemos conhecer pessoalmente, pela primeira vez, quando esteve fazendo show no Festival Bananada de 2016, em Goiânia. Na ocasião, Eduardo Carli e Ramon Ataide entrevistaram-na no Centro Cultural Oscar Niemeyer, mas de forma rápida e relampejante.
Muita água correu por baixo da ponte entre 2016 e 2023 – neste ínterim, tivemos um golpe de Estado, uma prisão de ex-presidente que liderava as pesquisas de intenção de voto, uma pandemia e um pandemônio… Fomos assolados pelos “cidadãos de bens” que adoram devorar “carne vermelha” – ai ai, “pare pr’eu descer! esta viagem já foi longe demais!”
Com o lançamento de seu segundo álbum de inéditas, A Situação (2023), a sempre politicamente desperta e de lábia destravada Sara Não Tem Nome cravou no cenário independente e alternativo uma obra sui generis que reflete o nosso Brasil nesta “Era Sinistroyka” (como dizem os Rios Voadores).
Nesta ocasião, para produzir o vídeo gigante que aqui vocês podem assistir (ele pesa 9 gigabytes, cês piram?) para um primeiro papo filmado em território mineiro, resolvemos ir a áreas historicamente densas de Belo Horizonte. Foi lá que pudemos, debaixo da mira um tanto feroz de um segurança não muito acolhedor, embarcar numa longa conversa. E através dela acessar muita coisa interessante sobre a situação existencial dela, a Sara anônima que nasceu na Contagem (MG) ultra-operária – lá onde “uma torre de cimento corta o céu e o coração”.
Em sua obra performática, musical e audiovisual ela consegue a proeza de não ter nome e de mesmo assim tê-lo sujo – como brinca em “Revés”, uma brincadeira mordaz com o jogo Banco Imobiliário e uma crítica ferina do capitalismo contemporâneo.
Nome sujo no cenário indie brazuca ela não tem, a não ser que se considere aquela sujeira benigna de quem viaja, se mete a fazer, se mescla com o pó do mundo por ser alguém que o conhece com a sola dos pés. Sara é daquelas que arregaça as mangas pro co-labor de parir arte com outrem – saca a voz e é existencialmente arteira mesmo em meio às piores adversidades (aí incluídos os boletos que não param de despencar em nossas cabeças nas condições da dividocracia – “malditas contas pra pagar!”).
Nisto que não é uma entrevista, a Sara faz mais do que responder a perguntas da imprensa, e Carli faz mais do que ler interrogações escritas numa pauta: ambos mergulham num rio de ideias às beiras da Lagoa da Pampulha, em Minas Gerais, primeiro no interior da Casa Museu JK, depois em interação sarcástico-crítica nas estátuas supracitadas.
Para além do bate-papo multitemático, o vídeo inclui vários fragmentos de videoclipes, de apresentações ao vivo e de conteúdos postados em rede social que fornecem um caleidoscópio da obra artística de Sara Não Tem Nome. Quem encarar o tranco ardido de assistir a tudo – pô, dura só o tempo de um filme longa-metragem, e vocês vivem maratonando série no Netflix! – terá oportunidade de compreender muito mais a fundo, e apreciar esteticamente com muito mais insight, o que se expressa nos álbuns dela – Ômega 3 e A Situação (além da obra da banda Tarda que Sara também integra).
Confere aí e nos conte o que achou nos comentários.
Nunca ouviu falar em Sara Não Tem Nome?
Ela também não tem playlist de videoclipes para dummies.
TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA
PARTE 1 – Corte A, 13 min
Eduardo Carli
– Sara, o álbum Ômega 3, de 2015, começou com a música Dias Difíceis, né? Eu acho que ela soa muito atual até hoje, né? Mas depois de 2015 talvez as coisas tenham se tornado ainda mais difíceis, não só para o brasileiro em geral mas também para os artistas, para os agentes culturais. O que você pensa dessas dificuldades que vieram no Brasil ali a partir de 2016? Pois eu vejo que você também tem um pensamento político, você é muito sagaz no seu comentário sobre questões políticas e tal, e nós tivemos o golpe que derrubou a Dilma, nós tivemos a prisão do Lula, nós tivemos a ascensão do bolsonarismo, né? Então, nesse contexto todo, você como um artista que permaneceu criando durante esse tempo todo, com que frequência a raiva, a exaustão suplantaram a razão? De que maneira você enfrentou a pandemia e o pandemônio?
Sara Braga
Nossa, pergunta complexa, né? Mas eu acho que vou tentar dividir por partes, né, porque é uma questão que dá pra falar muita coisa. Mas você falou que eu comecei com dias difíceis, né, e depois viraram dias impossíveis, né… E acabou que essas dificuldades e impossibilidades que vieram depois de 2016, né, com os eventos que você já comentou, do golpe contra a Dilma, prisão do Lula,, ascensão do bolsonarismo, enfim… foi ficando muito difícil ser artista, né? Existir, na verdade, no Brasil, principalmente para pessoas que fazem arte, que são de esquerda, que têm pensamentos que são contrários a essa ideologia terrível que foi ganhando espaço e que é contra a nossa existência, né? Pra mim, foi um momento de sentimentos muito controversos, momentos muito raivosos, momentos de muita depressão, momentos também de tentar ter força pra fazer alguma coisa e continuar criando. Eu acho que foi uma resistência, ou pelo menos uma tentativa de muitos artistas, de não se entregar, de tentar fazer alguma coisa contrária ao que estava acontecendo, tentando conscientizar as pessoas do quão terrível são essas ideias e o quão maléfico é para a sociedade como um todo. Então eu tentei, com a minha arte, fazer um pouco do que eu podia, porque eu também tive a sensação de me sentir muito frágil, muito fraca diante de todo esse caos, de toda essa situação.
E falando em situação, veio o álbum A Situação, que foi uma tentativa de contar um pouco de como eu entendi, de como eu vivi esses anos depois do golpe na Dilma. Uma das músicas do álbum, que é a “Déjà Vu”, ela surgiu depois do golpe, que foi um momento que eu percebi, acho que muita gente sentiu isso, de que as portas do inferno estavam se abrindo, de que tinha um precedente ali para coisas terríveis acontecerem e que acabaram acontecendo. Coisas até que a gente não imaginava aconteceram e foi escalonando muito rápido…
MÚSICA: “…as mesmas histórias de cinquenta anos atrás. / Volta o tempo, as mesmas desilusões de outrora / Eterno retorno dos círculos viciosos / Eu quero sair! Ah, ah, ah… Dèja vu! / Eu estou aqui de novo… Dèja vu!Um lapso, um estorvo… Isso não vai ter fim!”
E aí eu decidi fazer um álbum que falava sobre isso, assim, né?Como que tá sendo existir no Brasil dentro desse contexto. E aí o álbum saiu no começo desse ano (de 2023), que a gente teve um alívio de ter uma esperança de novo do Brasil voltar…. A ter democracia, a ter o básico, a gente pensar uma existência possível dentro do país. Porque pra muita gente já não estava sendo viável mais existir. Era uma afronta diária, né? Uma violência ainda maior. Então, eu quis fazer esse trabalho, assim, como uma espécie de álbum diário, sabe? Um disco retrato, assim, do que foram esses anos, do que foi esse momento pós-golpe da Dilma. E aí passam por essas diversas emoções, né? Diversas fases que eu tive. Por exemplo, “Agora” foi uma música que eu fiz durante a pandemia, que foi um momento muito sinistro, o pior emergir, para além da gente estar nesse governo terrível, ainda veio uma doença mundial. Então, era uma música de estar expressando essa urgência de fazer alguma coisa, de uma raiva, de como o sistema também consegue usar da miséria das pessoas, da humanidade, para capitalizar.
Então assim, eu fui ficando completamente maluca mesmo, foi um momento de insanidade. A “Incomoda”, que é uma música que veio também pensando nessas discussões da eleição, de bate-boca com família, grupo de WhatsApp, confusão. E a música tem isso, eu falo e as pessoas respondem, eu falo e as pessoas respondem. Tem esse diálogo um pouco caótico.
Publicado em: 04/09/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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